Espiritualidade e Cotidiano
Ainda um pouco e o mundo não mais me verá,
mas vós me vereis, porque eu vivo e vós vivereis.
Nesse dia, compreendereis que estou em meu Pai
e vós em mim e eu em vós (Jo. 14, 19-20).
A dinâmica da vida no contemporâneo imprime um ritmo frenético ao cotidiano, exigindo sempre respostas rápidas e ágeis a um número cada vez mais alucinante e crescente de tarefas. Desta lógica, desponta e se afirma a razão instrumental, de conteúdo prático e útil.
Assim, a perspectiva racionalista e pragmática acaba por direcionar e definir a visão do humano – mergulhado e perdido na secularidade da existência –, impossibilitando-o de ver para além do concreto e do objetivo. Neste caso, o espaço do cotidiano passa a ser recortado por ações imediatas, desprovidas de significado simbólico.
A existência, pautada e definida pelo que é secular, torna-se dilacerada pela impiedade do tempo cronológico – tempo devorador, do fazer coisas práticas e funcionais –, assumindo uma perspectiva cada vez mais alheia e indiferente à realidade dos símbolos, a manifestarem e comunicarem a presença do Transcendente.
Ora, a sensibilidade para o simbólico configura-se como possibilidade de desvelamento de uma realidade escondida. Por meio do símbolo, o Sagrado – que é Mistério – torna-se manifesto, revelando-se ao humano. Este fenômeno, em linguagem religiosa, é designado de hierofania.
A hierofania, a manifestação do Transcendente, abre espaço para a vivência da espiritualidade. Mas é preciso que o humano seja capaz de perceber o mundo como representação. As coisas – o próprio mundo natural e também cultural – por serem simbólicas, não significam exatamente aquilo que se mostram, de forma concreta e objetiva, e sim sugerem a realidade obscura que manifestam.
Neste ponto, a espiritualidade emerge de uma abertura fundamental para a linguagem simbólica do Sagrado. No entanto, quando tomado pela secularidade, o humano, enleado na correria cotidiana, revela-se inapto para a contemplação, via de acesso à verdade simbólica da manifestação divina.
Quando a realidade do mundo e das coisas perde sua dimensão simbólica, ou melhor, quando os olhos se tornam incapazes de perceber o mundo como representação, o humano se fecha para o Mistério. Veja bem, não é, de forma alguma, Deus que deixa de se manifestar nos símbolos, é o processo de secularização que torna o humano como que cego para os fenômenos hierofânicos.
Desta maneira, a clave de compreensão do contemporâneo relaciona-se, de forma direta, com nossa perspectiva de olhar: tomada pela miopia da falta de percepção secular ou dinamizada pela leitura de uma realidade profundamente simbólica.
De fato, assim é o tempo em que vivemos. Para alguns, dominados por um pragmatismo redutor, um tempo meramente cronológico, no qual a vida simplesmente deve continuar, sem em nada ser alterada (a lógica da indiferença rotineira). Para outros, que não se deixaram abater pela lógica da secularidade, um tempo de contemplação do simbólico que pede um profundo silêncio interior, permeado por um entendimento de que a vida não continua, de modo algum, da mesma maneira, pois o Sagrado se faz manifesto.
Os mestres da espiritualidade demonstraram perspicaz capacidade de enxergar Deus nas coisas mais singelas e cotidianas da vida. Assim, cultivar a espiritualidade consiste em não perder a sensibilidade de olhar o mundo e o cotidiano de modo a perceber a presença e manifestação da Transcendência. Em um sublime movimento de amor, o Transcendente se revela, abrindo-se ao humano, permitindo com que este o experiencie na dinâmica da busca pela Sabedoria, na percepção do que de fato é Belo, na vivência do Amor em si etc.
A experiência do Sagrado funda-se no exercício da contemplação – atitude de sabedoria, a buscar a verdade divina na Transparência, a transcender a mera objetividade do existir. Quando insensível e indiferente às expressões simbólicas, o humano torna-se inapto para interpretar as hierofanias que emergem no contexto da própria existência e provocam rompimento com o cotidiano ordinário.
O risco é perder-se, em última instância, de si mesmo, cortando e cindindo todas as possibilidades de encontro com o Divino.
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O Autor:
Adelino Francisco de Oliveira é professor de ética e teologia. Mestre em Ciências da Religião pela PUC e doutorando pela Universidade de Braga – Portugal.
Especialista no Evangelho de João, Adelino escreve para o Diário do Engenho sempre na segunda semana de casa mês – e é um de nossos recordistas .